Depois do
jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da
semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o
Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: —
dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é
a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter
dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em
campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei
se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito
parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a
sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o
que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.
Enfiou, e
quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia.
Sozinho,
liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um
americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”
De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o
couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a
frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve
fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço,
ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem
passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e
sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém
para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa.
E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e
encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para
fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais,
ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o
craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia
absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria
bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até
uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete.
Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os
russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa
atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha
cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria?
Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros
erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase
babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota.
Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos
vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
- Nelson Rodrigues